GP da Hungria acontece na F1 desde 1986
(Foto: Peter Fox/Getty Images / Red Bull Content)

GP da Hungria: como a F1 cruzou a Cortina de Ferro na Guerra Fria

Enquanto Estados Unidos e União Soviética trocavam boicotes olímpicos, a F1, já com o comando comercial cada vez mais forte de Bernie Ecclestone, estava se preparando no começo dos anos 80 para cruzar a fronteira conhecida como Cortina de Ferro que dividia o ocidente e oriente europeu. E foi em uma empreitada deste tamanho que nasceu o GP da Hungria.

A ideia, na verdade, era até mais audaciosa. Com corridas nas Américas do Sul e Norte estabelecidas, provas realizadas no Japão durante a década de 70 e até uma polêmica presença da África do Sul do apartheid, Ecclestone já previa na época os próximos passos da F1 para se tornar ainda mais global.

O retorno ao Japão e um pouso na Austrália já estavam em conversas naqueles primeiros anos da década de 80, mas o inglês queria mais. Romper a difícil relação que Europa Ocidental e Estados Unidos mantinham com a União Soviética era o grande desejo de Ecclestone. A ideia era mostrar que a F1 estava acima de questões geopolíticas e poderia ser um plataforma global para quem quisesse. E aproveitar esse cenário, claro, para fazer muito dinheiro.

Assim, o dirigente iniciou um projeto para que a F1 competisse na União Soviética. A ideia inicial era de uma prova em Moscou. E como Ecclestone nunca foi um homem de desejos pequenos, o objetivo maior era um circuito de rua em plena Praça Vermelha, lugar icônico para os russos.

Ecclestone pegou um avião e foi para a Rússia alguns meses depois dos Jogos Olímícos de Moscou em 1980, que foram boicotados por nada menos do que 65 países. Ele conseguiu abrir negociações com o líder soviético da época, Leonid Brejnev, que para sorte de Ecclestone, era um amante de carros, especialmente modelos internacionais.

O inglês vendeu a ideia de que a F1 era um esporte tão global quanto as Olimpíadas, mas que também levava a marca da tecnologia e desenvolvimento automotivo. Além disso, o fato dos Estados Unidos estarem presentes na época com dois (e às vezes até três etapas), era uma forma aguçar a vontade dos soviéticos pelo lado da rivalidade com os americanos.

Após longas conversas, Ecclestone conseguiu assinar um contrato para a realização do GP da União Soviética para 1983. A prova, inclusive, foi anunciada no calendário oficial para a temporada, prevista para acontecer no dia 21 de agosto. Era uma vitória imensa para o dirigente, que levava a F1 para o país que na época dividia o protagonismo geopolítico mundial com os Estados Unidos.

Só que em 10 de novembro de 1982, Brejnev morreu, e o país passou por uma mudança de liderança. O novo governo começou a questionar os custos da construção do circuito, organização e afins. E Ecclestone se viu enrolado com questões burocráticas que o fizeram desistir da prova já no início do ano.

Como a Hungria entrou na jogada para furar a Cortina de Ferro

Sem corrida na União Soviética para 1983, e bastante desmotivado em voltar a negociar com a liderança do país, Ecclestone começou a pensar em outras opções para levar a F1 para o leste europeu.

A primeira sugestão foi de conversar com a Iugoslávia, país natal de sua então esposa, a modelo Slavica Ecclestone. Foi neste momento em que entrou na conversa Tamas Rohonyi, empresário húngaro radicado no Brasil, que no começo dos anos 80 se tornou próximo de Ecclestone através da promoção da etapa da F1 em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro.

“Eu convenci ele que [Iuguslávia] não era uma boa ideia e recomendei meu país natal”, afirmou Rohonyi em uma entrevista ao jornalista Károly Méhes para o site F1 Destinations. “Ele simplesmente me disse para ir lá e fazer o pedido para as autoridades húngaras. E foi o que fiz”, continuou.

O contato inicial aconteceu com Tibor Balogh, presidente do Clube do Automóvel Húngaro, que gostou da ideia, mas admitia ser cético quanto às possibilidades do projeto se concretizar. Algumas semanas depois desta primeira conversa, o cônsul da Hungria no Brasil ligou para Rohonyi, pedindo que ele viajasse para o país europeu para encontrar o ministro Lajos Urbán, que se tornaria rapidamente um dos maiores apoiadores da ideia.

Capital da Hungria, Budapeste é considerada uma das cidades mais bonitas da Europa
Capital da Hungria, Budapeste é considerada uma das cidades mais bonitas da Europa (Foto: Lucas Santochi/Projeto Motor)

Durante 1984, Rohonyi e Ecclestone viajaram para a Hungria e foram recepcionados por Urbán, entre outros representantes do governo local. Eles então foram levados a várias localidades em Budapeste e escolheram o parque de Városliget como local para um circuito de rua. O dirigente inglês até se dispôs a assinar um contrato já para a temporada de 1985.

Só que autoridades municipais se recusaram a cortar árvores para a construção do circuito no parque, o que inviabilizou o projeto. Mais até do que os representantes da F1, o ministro Urbán ficou inconformado, pois não queria perder a oportunidade de levar a categoria ao país.

Ele então começou a procurar novas áreas e encontrou um grande terreno em Mogyoród, vila nas cercanias de Budapeste em que funcionava uma cooperativa agrícola. Urbán convenceu a líder local a ceder o espaço para a construção de um autódromo.

O ministro húngaro ligou então para Ecclestone para contar a novidade e que tinha sinal verde e dinheiro do governo e até mesmo dos soviéticos, que mantinham tropas na Hungria como defesa de todos os países do bloco comunista. Algumas semanas depois, Tibor Balogh viajou a Londres e assinou o contrato com Ecclestone para a realização do GP da Hungria a partir de 1986.

O primeiro GP no bloco comunista europeu

A construção do novo circuito de Hungaroring foi iniciada em 1º de outubro de 1985 e durou apenas oito meses. Mesmo em comparação com autódromos mais novos, foi uma das obras voltadas especificamente para a F1 realizadas em menor tempo.

Circuito de Hungaring foi construído em apenas oito meses
Circuito de Hungaring foi construído em apenas oito meses

Existia uma óbvia tensão por todos os lados. Os soviéticos não gostavam muito de todo aquele movimento de pessoas vindas do ocidente, além de toda questão de patrocínios em carros, macacões e tudo mais da F1 ligados a marcas do mundo capitalista. Já os representantes da Hungria tinham toda a pressão de terem bancado o projeto.

Pelo lado da F1, a maioria das pessoas apenas não fazia ideia do que esperar ao entrar em um país do bloco soviético do outro lado da Cortina de Ferro. A experiência, no entanto, foi bastante prazerosa. Praticamente todos os pilotos elogiaram a organização, a atmosfera na pista e a cidade de Budapeste.

O evento foi um tremendo sucesso, com 200 mil pessoas passando pelo novo autódromo durante todo o final de semana sem qualquer tipo de problema. Tudo isso deixou Urbán e seus liderados bastante aliviados.

Dentro da pista, a corrida foi marcada por um histórico embate entre os brasileiros Nelson Piquet e Ayrton Senna. Durante a briga pela ponta, o piloto da Williams fez uma ultrapassagem por fora na curva um que é considerada por muitos como a manobra mais incrível de todos os tempos na F1.

O sucesso do GP da Hungria não fez Ecclestone desistir, porém, de promover uma corrida na União Soviética. E quando Mikhail Gorbachev assumiu o país em 1985 e começou a implantar a Perestroika, programa de reformulação da economia, uma nova janela de oportunidade se abriu. Planos para uma etapa no aeroporto de Tushino, em Moscou, chegaram a caminhar, mas a queda da União Soviética em 1991 enterrou o projeto.

Novas tentativas de um GP da Rússia tanto na capital quanto em São Petersburgo voltaram à pauta em 2002, mas o sonho de Ecclestone foi realizado apenas em 2014, patrocinado pelo presidente Vladimir Putin, em um circuito de rua construído no parque olímpico da cidade turística de Sochi.

Oito edições da prova foram realizadas e mesmo depois de deixar a chefia da F1, em 2017, Ecclestone continuou uma presença no camarote presidencial ao lado de Putin a cada edição do GP. O evento, que seria transferido para São Petersburgo a partir de 2023 deixou o calendário em 22 por conta da invasão russa da Ucrânia.

GP da Hungria é uma das provas de mais sucesso no calendário da F1
GP da Hungria é uma das provas de mais sucesso no calendário da F1 (Foto: Charles Coates/Getty Images/Red Bull Content)

Enquanto isso, o GP da Hungria continua sendo realizado de forma ininterrupta desde sua estreia, em 1986 e é sempre considerado um dos grandes sucessos de público do calendário da F1. Com a queda da União Soviética, o país entrou para a União Europeia, o que a aproximou da Europa ocidental, mas o atual governo voltou a estreitar as relações bastante com a Rússia de Putin.

De qualquer forma, com outras adições recentes ao seu calendário principalmente no Oriente Médio, a F1 segue mostrando que seus interesses estão acima de qualquer questão geopolítica.

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