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Na última vitória de Senna e despedida de Prost, rivais selaram a paz

O GP da Austrália de 1993 ficou marcado como uma grande virada de página para a história da F1. Foi a prova de despedida do tetracampeão mundial Alain Prost e a última vitória de Ayrton Senna.

O mundo até sabia da primeira informação, mas a segunda, era impossível de estar no imaginário de qualquer um que seguia o Mundial na época. Por isso, talvez fosse impossível entender a dimensão do que estava acontecendo naquele domingo, 7 de novembro, já que a alguns meses depois, a categoria passaria a ter um cara totalmente diferente da que tanto chamou a atenção do mundo naqueles anos anteriores.

Senna e Prost eram os dois grandes protagonistas da F1. Entre 1988 e 93, apenas um campeonato não ficou com algum dos dois, em 1992, que Nigel Mansell se beneficiou de uma temporada em que sua Williams estava em um patamar técnico muito acima da McLaren de Senna e que Prost passava por um ano sabático após sua demissão da Ferrari no ano anterior.

E durante essas disputas, a rivalidade entre Senna e Prost extravasou qualquer limite de pista. Eles forjaram talvez a mais dura batalha entre dois pilotos da história do Mundial, com atuações incríveis de ambos os lados, mas também acidentes (alguns propositais), polêmicas, declarações ácidas, brigas políticas e tudo mais que um roteiro de Hollywood poderia pedir.

Essa história entre Senna e Prost é bastante conhecida, contada em diversos capítulos, inclusive aqui no Projeto Motor em diversos dos nossos conteúdos no site e no canal no YouTube. Mas neste artigo, vamos manter o foco naquela prova de Adelaide de 1993.

O contexto e a surpreendente pole de Senna

O GP da Austrália era a 16ª e última etapa da temporada de 1993. Naquele ano, apesar de um pouco mais de dificuldade, a Williams mais uma vez tinha o melhor carro e assim, Alain Prost já tinha garantido o seu quarto título mundial há duas etapas, em Portugal.

Senna vinha de uma vitória em Suzuka em que aproveitou a chuva para sobrar na pista japonesa. E no circuito urbano de Adelaide, existia uma expectativa de que o modelo MP4/8 da McLaren poderia mais uma vez ter um bom desempenho por conta das características do traçado.

Só que ninguém esperava uma pole position. Nas 15 corridas anteriores, a Williams tinha dominado a primeira posição do grid em todas. Prost largou na frente em 13 oportunidades e o seu companheiro, Damon Hill, em duas.

Só que a Williams enfrentou problemas com o asfalto ondulado de Adelaide nos treinos. Na época, o grid de largada era definido pelos melhores tempos que cada piloto fizesse durante duas sessões de uma hora realizada sucessivamente na sexta-feira e no sábado.

Logo na primeira, Senna fez a chamativa marca de 1min13s371, tempo 0s436 melhor que o segundo colocado, Prost. Isso aconteceu principalmente pelo fato da McLaren ter conseguido um acerto de suspensão muito melhor que o dos rivais. Hill chegou a dizer em entrevistas que a McLaren tinha finalmente tirado a desvantagem que a Williams manteve nas temporadas de 1992 e 93 com seus dispositivos eletrônicos.

O mais curioso da volta de Senna, no entanto, é que a McLaren estava desesperada pedindo para que ele voltasse para os boxes enquanto o brasileiro acelerava na pista. Acontece que o combustível do carro estava em um nível crítico, o que deixar o brasileiro na pista sem alimentação. Só que ao mesmo tempo, o rádio não estava funcionando.

O próprio chefe da equipe na época, Ron Dennis, confirmou a confusão em entrevista horas depois da sessão. “Tínhamos certeza de que ele não tinha combustível suficiente para completar outra volta rápida, e estávamos desesperados pedindo para ele diminuir pelo rádio”, contou o britânico. “Estávamos gritando para ele diminuir, mas tudo que escutávamos eram seguidos palavrões durante a volta rápida dele”, continuou.

Senna também falou da situação naquela sexta-feira, explicando que o botão do rádio em seu volante ficou preso, o que fez com que a equipe o ouvisse, mas ele não escutava o time no carro. “Eu sabia que estávamos com pouco combustível e estava chamando [no rádio], mas nunca recebi nenhum retorno”, disse.

De qualquer forma, o tricampeão completou sua volta rápida batendo o recorde do circuito e depois conseguiu retornar aos boxes com o pouco de combustível que ainda existia no carro. Na segunda parte da classificação, no sábado, ninguém passou nem perto de superar a volta do brasileiro.

A despedida da McLaren

Quando chegou à McLaren, Senna era considerado um piloto extremamente rápido, mas que ainda precisava se provar com um carro incontestável. Ele vinha de uma sequência de três anos correndo pela Lotus, que lhe deu modelos com condições de brigar e conquistar vitórias e até de lutar pelo título em 86 e 87, porém, não em total igualdade de condições contra os adversários de McLaren e Williams.

E o entrosamento com o novo time não poderia ter sido melhor e mais rápido. Logo na primeira temporada, ainda em uma certa paz com o companheiro Prost, ele venceu o seu primeiro campeonato mundial.

O encaixe com a McLaren e com a Honda, com quem ele já tinha trabalhado em 1987 na Lotus, foi quase perfeito, fazendo Prost, que já estava na quinta temporada no time com dois mundiais neste período, se sentir de escanteio em algum nível na relação.

Assim, no final de 1989, quando a guerra entre os dois pilotos explodiu de vez, McLaren e Honda ficaram do lado do brasileiro, o que fez Prost preferir se transferir para a Ferrari. E assim, seguiram-se quatro anos em que Senna praticamente fez o que queria dentro do time.

O mau desempenho em 1992 e 93, no entanto, fez o brasileiro aceitar, depois de muito tempo se oferecendo de forma pública, a proposta de ir correr pela até então dominante Williams. Assim, após seis temporadas e três títulos, Adelaide marcava a despedida da casa onde Senna se tornou um dos grandes ícones da história do esporte.

E claro que uma despedida dessas não poderia ser fácil. E quem talvez tenha testemunhado o grande peso deste momento foi Joe Ramírez, coordenador geral da McLaren, que contou em 1998 como foi o momento final antes do início da prova.

“Ayton de repente me chamou para apertar seu cinto. Estranhei porque ele nunca tinha feito isso. Ele me olhou atentamente e disse ‘Me sinto estranho de fazer isso pela última vez numa McLaren’. Foi um momento emocionante. Eu disse de volta ‘Vença essa por nós e eu te amarei para sempre”, contou o mexicano em publicação oficial da equipe McLaren.

“Ele instantaneamente pegou o meu braço e apertou muito forte, seus olhos se encheram de lágrimas. Os meus também. E pensei ‘Que merda, agora eu o chateei.’ Eu achei que tinha arruinado aquilo, com certeza”, continuou Ramirez, admitindo o temor de ter tirado a concentração de Senna poucos minutos antes da largada.

Senna largou na ponta de dominou toda a prova, perdendo a liderança apenas por um curto período durante a janela de pit stops. Após receber a bandeira quadriculada e celebrar a vitória no pódio, ele conversou mais uma vez com Ramirez nos boxes da McLaren.

“Foi lindo o que você me disse antes da largada. Aquilo quase me quebrou. Foi mais um teste que tive que superar”, disse o brasileiro, segundo Ramirez. O tricampeão ainda deu de presente para o mexicano o boné e a bandeira brasileira que ele utilizou no pódio. E assim terminava o último domingo de Senna pela equipe McLaren.

Os inimigos fazem as pazes

Claro que ninguém sabia que Senna tinha apenas mais seis meses de vida. Porém, o fato daquele 7 de novembro marcar a despedida de Alain Prost da F1 fez com que toda a imprensa e torcedores estivessem na expectativa para saber como seriam os últimos momentos daquelas duas lendas do esporte juntas no campo de batalha.

E os spoilers não eram exatamente dos melhores. Duas semanas antes, Senna venceu o GP do Japão com Prost em segundo. No pódio, Senna ignorou o eterno adversário, cumprimentando várias vezes apenas o jovem companheiro de equipe, Mika Hakkinen, que terminou em terceiro, inclusive levantando seu braço.

Em entrevista em 1998 para a revista britânica Motorsport Magazine, Prost contou que depois do pódio, quando caminhava para a coletiva de imprensa, ele se aproximou de Senna e propôs algum gesto público para mostrar que eles estariam encerrando o lado tóxico da rivalidade. Mas segundo ele, a resposta foi de um silêncio que o fez imaginar que o brasileiro não tinha a menor intenção de esquecer o período de brigas e polêmicas.

“Eu disse para ele ‘Talvez essa seja a última corrida em que estaremos em uma coletiva de imprensa juntos, e acho que poderíamos mostrar para as pessoas algo legal como apertarmos as mãos ou alguma coisa assim’. Ele não me respondeu, mas também não disse não. Então, achei que talvez ele concordaria. Fomos para a coletiva e ele nem olhou para mim”, relembrou o francês.

“Na verdade, eu até pensei que na Austrália, poderíamos trocar capacetes. Os últimos capacetes que usaríamos em uma corrida um contra outro. Mas depois do Japão, esqueci isso, pois ele não me pareceu interessado em qualquer tipo de reconciliação”, seguiu.

Ao final da prova em Adelaide, novamente Senna e Prost terminaram em primeiro e segundo, respectivamente. Dessa vez, antes mesmo de subir ao pódio, o brasileiro aguardou o adversário e o cumprimentou ainda na garagem.

Segundos depois, já em frente ao público, Prost esticou a mão para cumprimentar Senna e o brasileiro além de retribuir, ainda o puxou para o lugar o mais alto do pódio. Depois da entrega dos troféus, Senna mais uma vez puxou Prost para o seu lado e ergueu o seu braço. Estava demonstrado ali que sem ter o francês como adversário dentro da pista, Ayrton finalmente estava pronto para encerrar uma era de inimizade e rivalidade que transcendia os limites do esporte.

Senna e Prost se cumprimentam na garagem de Adelaide, segundos antes de subirem ao pódio
Senna e Prost se cumprimentam na garagem de Adelaide, segundos antes de subirem ao pódio (Reprodução)

Na entrevista concedida quatro anos depois à revista Motorsport, Prost citou o gesto de Senna com apreço, porém, sem deixar de destacar que toda essa situação mostrava muito sobre a personalidade sempre complicada do brasileiro.

“No nosso caminho para o pódio, ele já estava começando a falar um pouco. Ele me perguntou ‘O que você vai fazer agora?’, e eu fiquei muito surpreso. ‘Não sei ainda’, respondi. Ele disse sorrindo: ‘Você vai ficar gordo’. No pódio ele me abraçou, apertamos as mãos, e tudo mais. Por quê? Porque agora era ideia dele, e era nos termos dele. Tudo bem, de qualquer maneira, foi legal. Mas o Ayrton era assim. Se era ideia dele, tudo bem. Se não, esqueça”, descreveu o tetracampeão.

Nos meses seguintes, o próprio Prost conta que passou a falar com Senna quase que duas vezes por semana por telefone em longas conversas sobre corridas, segurança na F1 e questões pessoais. E que ele passou a entender melhor como funcionava a cabeça do antigo adversário, já que ficou claro que o brasileiro não se permitia ficar seu amigo antes porque o via como um rival que ele precisava bater de qualquer forma.

Em 2018, em uma nova entrevista ao podcast oficial da F1, “Beyond the Grid”, Prost revelou como a relação dos dois mudou a partir do pódio de Adelaide e que por isso pela primeira vez após correndo tanto tempo juntos, ele finalmente pode ver Senna como um amigo.

“Naquele momento [pódio em Adelaide], ele mudou completamente o jeito como me tratava. Alguns dias depois, ele me ligou. Foi a primeira vez que fez isso. E isso continuou durante o inverno. Eu posso chamar isso de amizade, pois quando você começa a falar de vida profissional, vida pessoal, suas preocupações, os seus problemas. Ele fez isso. E sempre digo que sei de algumas coisas que nunca vou falar. Até mesmo para a minha família, pois são segredos dele. Então, posso dizer que por esta perspectiva, éramos amigos.”

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