Como a guerra Williams x Benetton rachou a Renault em 1995 – Parte 1
Mesmo com a conquista do título do Mundial de 1994, o chefe da Benetton, Flavio Briatore, sabia que para a equipe e Michael Schumacher se manterem no topo na temporada seguinte, eles precisariam elevar um pouco seu jogo. E o ponto mais importante identificado para essa evolução era o motor.
Trocar o Ford Cosworth pelo Renault era a prioridade. Em um primeiro momento, a rival Williams, que utilizava os poderosos propulsores franceses, conseguiu impedir que a Benetton colocasse as mãos nos motores iguais aos seus. Mas uma manobra astuta de Briatore fez com que a Benetton conseguisse o equipamento da Renault.
A Renault passou a fornecer então os motores para as duas principais equipes do grid, que lutavam pelo título de 1995. Isso causou uma guerra até mesmo dentro da empresa francesa.
Neste primeiro artigo sobre essa história, vamos contar como a Benetton conseguiu adquirir os motores Renault e contextualizar esse tipo de associação entre montadotas e times na época e a importância para cada equipe.
A F1 viveu eras muito distintas entre si na relação entre construtoras de carros e fornecedoras de motores. Nos anos 1970, a receita básica do sucesso era casar o trem de força formado por motor Cosworth DFV V8 e câmbio Hewland com um bom chassi, ter um primeiro piloto competente e um engenheiro destemido na busca por explorar a ainda pouco conhecida engenharia aerodinâmica.
Com a primeira era turbo, nos anos 1980, a lógica mudou drasticamente. Hoje, o cenário basicamente só privilegia fabricantes automotivas. A não ser que você seja um multimilionário excêntrico, como Dietrich Matezchitz, capaz de usar sua própria empresa, a Red Bull, como vetor para investir pesado na categoria.
Houve um ínterim, entre as décadas de 1980 e 90, em que reinou uma espécie de fase híbrida. Nela, ainda dava para ser campeão em uma esquadra garagista, mas só se você estivesse atrelado a uma fornecedora importante de motores.
Foi assim que a McLaren viveu seu tempo de ouro primeiro ao lado da Porsche, depois da Honda e, por fim, da Mercedes-Benz. A Williams conseguiu o mesmo de maneira mais breve com a Honda e, depois, em um celebrado e longevo casamento que viveu entre 1989 e 97 com a Renault.
Naquele momento, a receita para uma grande montadora com pretensões ambiciosas na F1 era simples: escolher uma equipe bem estruturada para ser sua cliente principal, dando a ela todas as regalias. E, então, vender especificações mais defasadas a outros times, a fim de recuperar um pouco do investimento dispendido.
Houve exceções, claro, sempre forçadas pelas circunstâncias. Um caso é o da Ford em 1993. A Benetton era sua equipe principal, mas a McLaren ficou órfã de fornecedora após saída abrupta da Honda e a marca americana não quis perder a oportunidade.
Tentou, inicialmente, tratar sua nova cliente de luxo como se fosse uma Larrousse ou Minardi da vida, já que a Benetton possuía um contrato que previa tratamento preferencial. Só que estávamos falando da toda poderosa McLaren, ora bolas, e que ainda tinha ninguém menos que Ayrton Senna como primeiro piloto.
Tanto o ás brasileiro quanto Ron Dennis não descansaram até garantir que o carro recebesse a mesma especificação de motores que a Benetton, feito obtido na oitava etapa daquela estação, em Silverstone.
Pois foi a mesma Benetton a protagonista de outro caso fora da curva naquele período. Este é ainda mais tenso e intenso, pois envolveu as duas forças que lutaram pelo campeonato de 1995. Estamos falando, claro, da Renault e suas duas clientes de ponta naquela estação: a já velha conhecida Williams e a recém-chegada Benetton.
Após o ocaso da Cosworth, no começo dos anos 1980, este foi o primeiro e único ano na história da F1 em que dois diferentes construtores disputaram o título da categoria usando um mesmo motor. E isso diz muita coisa sobre como a F1 mudou nos últimos 50 anos.
Como a Benetton usou a Ligier para chegar à Renault
Para chegarmos a tal cenário, precisamos entender por que a Renault resolveu se envolver com duas equipes de ponta naquele ano de 95.
Para tanto, temos que voltar quase um ano no tempo, até maio de 1994, e nos deslocar à garagem de outra escuderia, a Ligier, que recebia os motores Renault naquele momento. O fornecimento era fruto da influência direta de seu fundador, Guy Ligier, junto ao governo da França, um dos acionistas da montadora.
Apesar de contar com o melhor motor da ocasião, a Ligier vivia momentos terríveis. Além da situação financeira periclitante, os franceses tiveram de encarar o vexame de ver seu então acionista majoritário, Cyril de Rouvre, preso em meio a um escândalo de fraudes fiscais.
Flavio Briatore, o chefe, e Tom Walkinshaw, diretor de engenharia da Benetton, viram ali uma oportunidade: comprar a Ligier e manobrar para fazer o contrato dela com a Renault virar um contrato desta com a Benetton.
Vale observar que a dupla já tentara a mesma manobra um ano e meio antes, entre o fim de 1992 e início de 93. A Williams, atenta à movimentação e sem querer dividir sua artilharia com outra equipe de ponta, topou ceder o câmbio e outras partes mecânicas para a Ligier naquele ano, só para evitar que os donos da Benetton se tornassem sócios da operação francesa.
Ocorre que, naquele maio de 94, a situação era tão fragilizada que não teve mais jeito: Walkinshaw e Briatore adquiriram 50% da Ligier e se tornaram eles os principais donos do empreendimento. A partir dali, engendraram um plano para transferir o contrato de fornecimento de motor da Renault para a Benetton em 95, no que lograram êxito.
Em troca, a Benetton se comprometeu a prestar “assistência técnica” para que a Ligier construísse o carro da temporada seguinte a um custo relativamente baixo, visto que a operação contava com recursos escassos e sequer havia um projeto de carro para a temporada seguinte.
Além disso, Briatore obteve para a Ligier os motores Mugen, que estavam dando sopa no mercado após a falência da Lotus e representavam uma evolução dos velhos Honda V10 usados pela McLaren até 1990. Não chegavam ao nível dos Renault, claro, mas ao menos eram propulsores com desempenho decente para uma equipe de meio de grid.
O acordo inicial previa que a Benetton forneceria informações sobre seu novo carro, o B195, a fim de ajudar os engenheiros da Ligier a encontrar o melhor caminho de desenvolvimento em um ano de mudanças aerodinâmicas importantes. As dimensões do bólido e dos aerofólios mudariam sobremaneira, consequência do acidente que vitimou Senna em Ímola.
“O que vimos na prática foi gente da Ligier vindo à [fábrica da] Benetton [em Enstone, Reino Unido] para construir peças usando nossos moldes! Isso enfureceu tanto alguns membros da equipe que [a direção da Benetton] passou a dar uniformes do time para que o pessoal da Ligier circulassem pela fábrica mais despercebido”, revelou certa vez Willem Toet, chefe do time de aerodinamicistas da Benetton, sem esconder seu inconformismo com a tática.
Como consequência, o Ligier JS41 parecia uma cópia quase idêntica do Benetton B195, o que inclusive poderia ser interpretado como uma quebra do regulamento técnico da categoria e gerou muitos protestos por parte dos concorrentes das duas esquadras.
Max Mosley, presidente da FIA, chegou a visitar a sede da Ligier em Abrest, França, para investigar o caso, mas não conseguiu encontrar evidências suficientes para punir nenhuma das duas escuderias. Por quê? O próprio Tom Walkinshaw explicou certa vez:
“Aerodinamicamente, [os carros são] tão próximos quanto poderíamos fazer. Se você pega engenheiros que trabalham na Benetton [para construir o modelo da Ligier], é óbvio que o resultado vai ser parecido. Agora, mecanicamente e estruturalmente os projetos são muito diferentes. Nos detalhes, não tem nada intercambiável entre eles”, defendeu.
Além de escapar de qualquer sanção da FIA, Briatore conseguiu o que mais queria: trouxe para a Benetton o melhor motor do grid. Ao mesmo tempo, a Williams, que dominara a F1 de modo acachapante em 92 e 93, mas já perdera o título de pilotos justamente para a rival da marca de roupas em 94, teria uma nova dor de cabeça pelo caminho.
Mais do que isso, a própria Renault viveria tempos de muita competitividade interna e pressão, talvez uma pressão sem precedentes vivida por uma fornecedora de motores na F1. Mas deixaremos para contar o resto dessa história na segunda parte de nossa jornada.
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