(Foto: FIA WEC / FocusPackMedia - Marius Hecker)

Simbolismo e caminho da Ferrari para vitória em Le Mans após 58 anos

A vitória da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans de 2023 tem um peso gigantesco para a equipe italiana, para o próprio evento e para o automobilismo no geral. A Ferrari é uma marca de esportivos que veio das pistas. Que nasceu para vencer corridas e encontrou na atividade automotiva um meio de se financiar para esse objetivo.

A última participação com uma operação oficial de fábrica da Ferrari em Le Mans tinha acontecido há 50 anos. E a última vitória, há longínquos 58 anos. O hiato parecia que já não incomodava mais pela relação da marca com a F1 ser mais óbvia, principalmente para os fãs mais recentes.

Mas a relação da escuderia italiana com as provas de endurance, e principalmente com Le Mans, sempre foi muito forte. Por isso, essa reconexão em 2023 foi tão importante para recuperar essa história. E isso vale tanto para a marca como para o evento.

Se olharmos para a história do automobilismo, a Ferrari, entre triunfos e fracassos, já esteve presente desde a sua fundação em quase todos os grandes eventos e momentos do esporte a motor tanto nos Estados Unidos, Europa ou mundiais.

Desta forma, não poderia existir decisão mais acertada do que a da atual direção da empresa de colocar a Ferrari de volta para competir pela vitória geral nas 24 Horas de Le Mans. Para se ter ideia, a relação entre a escuderia e a tradicional prova de endurance vem de antes mesmo da F1.

Em 1949, a Ferrari estreou como construtora em Le Mans, um ano antes da criação do Mundial de F1. O time, que antes da II Guerra era uma equipe de competições da Alfa Romeo, estava agora fabricando seus próprios carros e venceu com a dupla formada pelo Barão Peter Peter Mitchell-Thomson e Luigi Chinetti no modelo 166 MM.

Aquela seria a primeira de nove vitórias em um período de 16 anos, incluindo uma sequência arrebatadora de sete triunfos entre o curto período de 1958 a 65, época em que só foi derrotada uma vez pelos britânicos da Aston Martin.

A Ferrari seguiu forte até o final da década de 60, apesar de não conseguir voltar a vencer, num período dominado pela americana Ford, que derramou milhões e milhões de dólares em seu programa esportivo para conseguir bater os rivais italianos, cuja operação era muito menor. Essa luta, inclusive já está imortalizada em filmes e documentários, que trazem as visões bastante distintas das situações pelo olhar americano e o europeu.

Depois da compra da Ferrari pela FIAT, em 1969, a empresa resolveu escolher prioridades. A F1, que sempre foi a operação principal, mas ainda dividia atenção com o programa de endurance, passou a receber foco total. E fora da pista, novos modelos esportivos seriam desenvolvidos para aumentar a rentabilidade da empresa. Assim, a empresa fez sua última participação com equipe de fábrica em Le Mans pela vitória geral em 1973.

Não podemos dizer que a estratégia deu errado. A Ferrari, que não vencia títulos na F1 desde 1964, conquistou quatro campeonatos de construtores e três de pilotos durante a segunda metade da década de 70. Além disso, a marca ficou para sempre ligada ao sentimento de velocidade e se tornou um ícone do automobilismo, o que ajudou a consolidar sua presença do mercado automotivo de esportivos, principalmente a partir dos anos 80.

Algumas incursões não oficiais chegaram a ser realizadas. Em 1981, uma versão modificada para corridas do modelo 512 BB, sem participação direta da empresa, conquistou uma vitória na classe IMSA GTX em Le Mans, ficando em quinto na classificação geral.

Em 1993, em um projeto encomendado pelo empresário italiano Giampiero Moretti, proprietário da fabricante de peças e acessórios automotivos Momo, a Ferrari projetou o modelo 333 SP. O protótipo seria construído pela Dallara e teria como mercado principal provas de endurance americano da IMSA. Mas os clientes também participariam de Le Mans nos anos seguintes, inclusive com uma vitória na classe LMP1 em 1998, quando terminou em oitavo na geral. A Ferrari, no entanto, nunca entrou com o 333 SP em uma empreitada oficial de fábrica.

Mesmo à distância, modelo 333 SP marcou nos anos 90 o retorno da Ferrari às competições de endurance com protótipos como construtora (Foto: Ferrari)
Mesmo à distância, modelo 333 SP marcou nos anos 90 o retorno da Ferrari às competições de endurance com protótipos como construtora (Foto: Ferrari)

A operação da Ferrari no endurance voltou a ganhar mais importância nos anos 2000, quando a marca começou a investir em sua divisão de GTs. Em parceria com equipes que passaram a receber apoio oficial enquanto os carros eram desenvolvidos pela própria equipe em suas instalações em Maranello e Fiorano.

Desde 2003, a Ferrari conquistou nove vitórias nas principais classes de GTs em Le Mans, se consolidando como uma das forças desta divisão.

O novo momento da Ferrari em Le Mans

Uma convergência de fatores contribuiu para a volta da Ferrari para a principal divisão de Le Mans e do Mundial de Endurance. De um lado, a F1 passou a adotar um teto de gastos que limita o quanto cada equipe pode investir na operação de sua equipe. A Ferrari se viu com uma infraestrutura enorme, com centenas de funcionários como engenheiros e mecânicos, entre outras funções, que a faziam estourar esse limite.

Antes de simplesmente enxugar seu pessoal, a direção da Ferrari resolveu olhar para opções de possíveis novos projetos. Até mesmo a Indy chegou a ser estudada, mas a escolha acabou sendo pelo WEC e as 24 Horas de Le Mans.

Acontece que na época, a categoria de endurance também estava passando por uma pequena revolução em busca de manter sua relevância e até mesmo sobrevivência. Assim, não só foi adotado o novo regulamento de Hipercarros para sua classe principal, como também se chegou a um acordo com a IMSA, competição americana da modalidade, para que os principais protótipos das categorias pudessem competir em ambas.

Assim, o custo do desenvolvimento de um protótipo para as principais montadoras do mundo caiu ao mesmo tempo em que o interesse de patrocinadores, pilotos e marcas subiu. Foi desta forma que a Ferrari se juntou a Toyota, que já está há mais de uma década na competição, e Peugeot, que retornou em 2022, além de Cadillac e Porsche, que também entraram em 2023, e Alpine, Lamborghini e BMW, que chegam em 24.

Em 2023, Le Mans voltou a ter uma briga com diversas montadoras em sua classe principal (Foto: FIA WEC / FocusPackMedia – Harry Parvin)

Isso sem contar com a boutique de supercarros Glickenhaus e a equipe ByKolles, que adotou o histórico nome da Vanwall, que também entraram com seus times independentes fabricando protótipos próprios e aumentando ainda mais o número de participantes.

Dessa forma, a Ferrari criou em parceria com a Dallara o modelo 499 P. O projeto de Flavio Manzoni foi desenvolvido totalmente no centro de engenharia da Ferrari e conta com um motor V6 de 3 litros biturbo com a base na arquitetura do propulsor utilizado nos GT3 da marca.

A unidade de potência é híbrida, complementada por um motor elétrico instalado no eixo dianteiro que desenvolve cerca de 270 cv de potência extra quando o carro está a mais de 120 km/h, e é alimentado por um sistema de recuperação de energia do tipo ERS durante as freadas, no mesmo molde do MGU-K da F1.

A estreia aconteceu na primeira etapa do WEC (Mundial de Endurance) de 2023, as 1.000 Milhas de Sebring, em que a Ferrari terminou com um terceiro lugar, atrás dos dois protótipos da Toyota. Em Portimão, na segunda etapa, a Ferrari conquistou uma segunda posição, e em Spa, ficou em terceiro, mas terminou mais próxima da Toyota, dominadora da categoria nas últimas cinco temporadas, recebendo a bandeira quadriculada a apenas 1 minuto dos vencedores.

Protótipo 499 P da classe Hipercarro é o responsável pelo triunfante retorno da Ferrari a Le Mans na classe principal do endurance atual (Foto: Ferrari)
Protótipo 499 P da classe Hipercarro é o responsável pelo triunfante retorno da Ferrari a Le Mans na classe principal do endurance atual (Foto: Ferrari)

Para Le Mans, o WEC resolveu realizar um ajuste no seu Balanço de Performance (BoP), um dispositivo pelo qual a categoria pode alterar o peso mínimo e usar medidas para diminuir a potência dos carros para deixar a competição mais equilibrada.

Soberana na pista, a Toyota acabou recebendo um peso extra e passou a ser mais ameaçada pela Ferrari. E a vitória em Le Mans passou a contar com uma briga de titãs entre os japoneses e os italianos.

Na classificação, a Ferrari marcou a sua primeira pole geral em Le Mans desde 1973, justamente na última edição que contou com uma participação de fábrica da marca na prova. E na corrida, após uma bela briga com a Toyota e até um drama nas horas finais quando o carro teve problemas para ligar no final de dois pit stops, a vitória finalmente veio de novo.

A Ferrari finalmente é campeã em Le Mans e recupera toda a sua história que vai muito além da F1.

Outras histórias de Le Mans 2023

A Toyota terminou com uma segunda posição amarga após cinco vitórias consecutivas e praticamente se manter como única montadora a seguir acreditando em Le Mans durante um período complicado para o evento.

A marca japonesa segue como uma das grandes favoritas para o restante da temporada do WEC, mas é claro que, assim como a Indy tem que conviver com o peso das 500 Milhas de Indianápolis, será difícil esquecer a derrota na prova mais importante da temporada.

Em terceiro, a Cadillac marcou o seu retorno a Le Mans com um bom desempenho. Mesmo que não tenha conseguido se mostrar ao nível de Ferrari e Toyota, a marca americana mostrou que parte de uma boa base para desenvolver o seu projeto para os próximos no WEC e Le Mans.

As grandes decepções acabaram ficando para a Porsche, em que no retorno a Le Mans não terminou nem entre os 15 primeiros, e a Peugeot, que segue com problemas de desempenho em seu modelo 9X8 e terminou atrás até mesmo dos carros da Glickenhaus, com uma operação muito mais enxuta.

Chevrolet Camaro ZL1 de Nascar adaptado participou das 24 Horas de Le Mans com operação da equipe Hendrick e participação do heptacampeão da categoria americana Jimmie Johnson (Foto: FIA WEC / FocusPackMedia – Gabi Tomescu)

E vale ainda menção para o participante de 2023 do Garagem 56, vaga direcionada para projetos experimentais e que contou nesse ano com a participação de um carro adaptado da Nascar, pilotado pelo trio formado por Jimmie Johnson, Mike Rockenfeller e Jenson Button.

O modelo Chevrolet Camaro ZL1 preparado e operado pela equipe Hendrick Motorsports chegou a andar boa parte da prova entre os mais rápidos da classe GTE e flertou com o objetivo de terminar à frente de todos os modelos GT. Porém, um problema de transmissão impediu o resultado, apesar de mesmo assim a equipe ter conseguido chegar até o final da corrida, completando 285 voltas contra 213 do vencedor da GTE, curiosamente uma Corvette.

Com tudo isso, as 24 Horas de Le Mans de 2023, que marcaram o centenário da primeira edição da prova, acabou contando com um tempero histórico muito especial que fez todos olharem para o vasto passado, mas também projetando um belo futuro para o evento e seus participantes.

Confira os vídeos da nossa série “WEC em 5 minutos” na playlist do canal do Projeto Motor:

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